Este editorial, escrito por Andréa Caprara e Valéry Ridde, foi publicado em novembro passado na edição 23 da revista Global Health Promotion. Aborda a necessidade de fortalecer a promoção da saúde na América Latina através do exemplo da epidemia de Zika. Este artigo também está disponível em espanhol, inglês e em francês.
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Na comemoração do aniversário de 30 anos da Carta de Ottawa (1), a chegada do Zika vírus na América Latina e a declaração pela OMS, no final de 2015, que caracteriza o Zika com sendo uma emergência global de saúde pública, nos relembra quão pouco conhecidos e pouco implementados são os pilares da Carta em todo o mundo.
Nos últimos três anos, a América Latina foi confrontada com diferentes epidemias de doenças virais, todas transmitidas pelo mesmo vetor, a saber, o mosquito Aedes aegypti. As populações e as autoridades de saúde latino-americanas têm se preocupado principalmente com a dengue, a infecção viral mais importante em termos de sua morbidade e impactos econômicos. Neste contexto, a região também sofreu o surgimento do vírus Chikungunya em 2014 e do Zika vírus em 2015. Os responsáveis pela vigilância epidemiológica local já não têm lugar em seus mapas para novos casos (Figura 1). Essa epidemia mais recente tornou-se mais grave e alarmante quando sua correlação potencial com o aumento exponencial da microcefalia e outras anomalias congênitas foi encontrada em fetos e lactentes, sugerindo transmissão humana vertical, bem como possível transmissão sexual.
Muitas vezes na história da saúde pública e controle de doenças, o contexto de epidemias tem sido tratado de forma simplista. Os debates atuais parecem focados na busca de uma vacina milagrosa, apesar de que a recentemente introduzida para dengue na América Latina já está sendo questionada (2). As chamadas para apresentar propostas de pesquisas incidem sobre questões clínicas e médicas e, menos frequentemente, sobre intervenções de controle de vetores.
É surpreendente constatar que as evidências sobre a eficácia e implementação de intervenções de controle de vetores sejam tão raras, considerando que conhecemos muito bem o papel desses vetores na transmissão da doença (3). Nem todos os sistemas de vigilância têm incorporado este novo vírus nos protocolos de notificação obrigatória. Além disso, parece que a maioria das intervenções atualmente implementadas operam no âmbito de um paradigma biomédico: pulverização aérea e terrestre com inseticida, liberação de mosquitos transgênicos no ambiente, instalação de mosquiteiros tratados com inseticida, larvicidas em tanques de água, etc.
Estas vias de investigação e intervenção são úteis e promissoras, embora o recurso sistemático a inseticidas químicos seja questionável para o ambiente e a saúde. No entanto, “voltar ao futuro” para uma abordagem clínica e biomédica é preocupante. É como se a Carta de Ottawa de 1986 (1), a Declaração de Sundsvall de 1991 (4), a Declaração Ministerial de Cidade do México de 2000 (5) ou as conclusões e recomendações mais recentes da Comissão da OMS sobre Determinantes Sociais da Saúde em 2008 (6) foram novamente esquecidas.
Não entraremos nos pormenores dessas declarações e de sua importância para os determinantes sociais da saúde, as desigualdades sociais em saúde (7) e a abordagem ecológica em saúde (8,9); entretanto, as reações à chegada do Zika vírus na América Latina são reveladoras e mostram a necessidade de afirmar uma vez mais os valores e ações sustentados pela promoção da saúde. A pesquisa e a formação devem ser mais interdisciplinares do que são hoje. O papel da globalização, do consumo de massa, do desmantelamento dos serviços públicos por uma ideologia neoliberal dominante e do aumento das desigualdades sociais na saúde na América Latina devem ser prioridades, não apenas para a pesquisa, mas também para ações para epidemias como o Zika.
Alguns podem prever que a epidemia Zika vai perder seu fôlego por si só e que o vírus não voltará por vários anos, Mesmo assim, não podemos deixar de intervir, porque o Aedes é responsável por outras tribulações. Por exemplo, os estudos sobre os determinantes sociais da mortalidade relacionada à dengue são muito raros (10) e é necessário realizar mais pesquisas nas ciências sociais sobre as consequências sociais, humanas e psicológicas das crianças com microcefalia.
É preciso financiar a pesquisa de intervenção usando métodos mistos para entender melhor as intervenções na sua totalidade. Os programas de controle de vetores ecológicos (11) e “biosseguros” (12) devem deixar de ser apenas estudados de forma entomológica: precisam envolver todas as disciplinas para analisar intervenções que, por sua própria natureza, são complexas. A pesquisa de ação participativa deve ser valorizada pela academia e pelos financiadores (13), uma vez que os pensadores latino-americanos são seus pioneiros (em especial, Paulo Freire e Orlando Fals Borda).
As ciências sociais devem ser utilizadas para compreender melhor as intervenções implementadas pelos governos nacionais e locais (9). No entanto, ainda que um dos raros cursos sobre a dengue na América Latina (http://www.redaedes.org) optou por focar o Zika em 2016, nem uma vez durante os quatro dias de capacitação houve palestra sobre ou menção a Ciências Sociais. A apresentação de encerramento não mencionou nenhuma via de pesquisa nesse sentido, apenas aquelas relativas à vacinação e aspectos biomédicos.
As iniciativas em nível local também têm que levar em conta os determinantes sociais da saúde e trabalhar mais intersetorialmente. Essa colaboração evitaria criar mais silos entre os agentes de saúde e agentes de controle de vetores nas cidades, bem como a urbanização e o acesso a serviços sociais básicos (educação, contracepção, etc.). A participação das populações, especialmente mulheres (14), nas decisões que lhes dizem respeito, na sua família e na sua comunidade, devem voltar a estar no centro destas ações, sem cair num otimismo ingênuo sobre certas abordagens. A investigação clínica e o desenvolvimento de vacinas devem certamente continuar, mas não à custa de analisar como os serviços de saúde podem ser reorientados para a atenção primária, a presença e a formação de pessoal de saúde qualificado e a redução das desigualdades de acesso à saúde para cobertura universal de saúde. (15).
A chegada (e logo a partida) do Zika na América Latina é uma janela privilegiada de oportunidade para os empresários políticos promotores da saúde elevarem suas vozes. Por outro lado, fazer-se ouvir pelos “decisores políticos que tiveram de tomar decisões diante de uma enorme incerteza” (16) é uma questão completamente diferente! No entanto, temos de agir agora. Caso contrário, o Aedes e as desigualdades sociais continuarão seu trabalho destrutivo.
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